quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Sobre o raciocínio ético: os conteúdos (Parte 4)

Bom dia!

Segue a parte 4 do artigo intitulado "Sobre o raciocínio ético", iniciando a seção "conteúdo" (partes 4, 5, 6 e 7), que aborda os conteúdos possíveis de preencherem a forma que um raciocínio deve ter, considerando as consequências sobre os atingidos pela decisão nas deliberações éticas.

Volto a repetir que considero a leitura deste artigo indispensável, pois, como nosso amigo Luciano Cunha já havia concluído por aqui, "Nossos sentimentos podem ser apenas produto de nossos preconceitos (ou podem ser realmente sentimentos éticos, mas só podemos descobrir isso se fizermos uma análise racional visando eliminar possíveis preconceitos)." Dessa forma, se estamos realmente interessados em agir da forma correta, é preciso darmos mais atenção ao que a razão tem a dizer sobres as questões éticas, inclusive sobre a reflexão proposta neste blog (na postagem intitulada "O que há de errado com o especismo???"): como (com qual coerência) nós podemos respeitar a vontade que uns (os animais humanos) têm em continuar vivos e aproveitar a vida, e, ao mesmo tempo, desrespeitar essa mesma vontade em outros (os animais não-humanos sencientes que, assim como nós, também querem continuar vivos e desfrutar a vida)???

Boa reflexão e até a próxima!!!


Abraços!
Bruno


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Sobre o raciocínio ético: o conteúdo (Parte 4)


Por Luciano Carlos Cunha*


Nas colunas anteriores, discutimos doze critérios a respeito da forma que um raciocínio ético deve tomar. Como mencionei, esses critérios não estão esgotados; pode ser necessário aumentar a lista, a fim de iluminar melhor nosso guia para decisões. Independentemente dos futuros aperfeiçoamentos, ainda não adicionamos nenhum conteúdo a essa forma. Devemos ser imparciais, mas devemos considerar imparcialmente exatamente o que? Devemos aumentar a quantidade de ações éticas no mundo, mas que ações exatamente são essas?

Forma validando o conteúdo/ mais de um conteúdo

É importante notar que os possíveis conteúdos que preencherão a forma serão apontados como válidos ou não a partir da própria forma. Ou seja, além dos critérios formais guiarem as decisões, guiam também a escolha de conteúdos. Chamarei esses conteúdos de “metas da moralidade”, que são simplesmente aquilo que as decisões éticas devem buscar aumentar no universo. Veremos agora que não existe apenas um, mas vários tipos de conteúdo que passam nos testes propostos pelos critérios formais. Talvez daí venha a confusão com pensar que então a ética é relativa ou subjetiva. É importante ter em mente, contudo, a diferença entre existir mais de um conteúdo possível para a moralidade e qualquer conteúdo valer como conteúdo moral. Portanto, a ética continua objetiva, mesmo havendo várias metas legítimas de serem buscadas.

Conteúdos em conflito

Optei por considerar aqui vários tipos de conteúdo porque é assim que geralmente pensamos no dia a dia. É verdade, algumas teorias filosóficas sobre a ética só admitem um determinado tipo de conteúdo como válido. Porém, poucas pessoas comuns são, por exemplo, totalmente kantianas ou totalmente utilitaristas. A maioria de nós se preocupa, por exemplo, tanto com as motivações por trás de nossas decisões quanto com as consequências que surgirão delas. Por isso, vamos optar pela tarefa mais difícil de reconhecer a validade de vários conteúdos, já que a decisão ética na vida real também geralmente se apresenta desse modo. Porém, pode acontecer que às vezes os conteúdos entrem em conflito, e, ao buscarmos cumprir um, violemos outro. No meu entender, isso não é um problema tão grave. Talvez a importância de optar por termos conteúdos com preocupações morais distintas é que elas servem para limitar os excessos umas das outras. No final desse item, veremos exemplos de como isso pode acontecer. É verdade, existirão casos muito difíceis de serem resolvidos, onde não saberemos ao certo qual conteúdo deve ter primazia. Porém, isso não invalida os casos fáceis de se perceber qual preocupação deve pesar mais. Além disso, essa dificuldade não é um “defeito” da ética; em outras áreas do conhecimento (por exemplo, as ciências empíricas), também existem problemas muito difíceis de serem resolvidos, e nem por isso  descartamos tais áreas, ou consideramos inválidas as soluções que proporcionam para outros casos mais fáceis, ou ainda, as consideramos relativas ou subjetivas.

Roteiro

Faremos agora o seguinte: reconstruiremos uma defesa de que os princípios da não maleficência (evitar de causar danos) e da beneficência (praticar ações que curem um dano, previnam um dano ou proporcionem um benefício) são conteúdos válidos para a forma que estabelecemos. Em seguida, faremos uma lista de outros possíveis conteúdos, que visam iluminar pontos não contemplados nos princípios da não maleficência e beneficência. Ao mesmo tempo, apontaremos também como é possível um conteúdo identificar um excesso da parte de outro. Assim, uma meta da moralidade pode ser complementar à outra, embora às vezes possa ir em sentido contrário.

Não maleficência e beneficência 

Vimos acima que esses princípios dizem respeito a fomentar o benefício (entendido aqui no sentido amplo de felicidade, satisfação de preferências, desfrute etc.) e diminuir o dano (no sentido amplo de dor física, psicológica, perdas, privações etc.). Como é um conteúdo para a ética, os benefícios e danos precisam ser considerados de maneira universalizável e imparcial, por exemplo (como visto na parte formal). É importante percebermos que preocupações com benefícios e danos dizem respeito às consequências das decisões. Se concluirmos que uma preocupação com as consequências de nossas decisões é essencial, de um ponto de vista ético, então todos os conteúdos que estão diretamente e totalmente em conflito tal preocupação (por exemplo, conteúdos que não levem em conta e em grau algum, as consequências), são inválidos. Isso não significa que não haja outros conteúdos tão válidos quanto a preocupação com as consequências , que possam estar, em algum grau, em oposição a ela.

A defesa dos princípios da não maleficência e beneficência se apoia em algo que é bastante óbvio para a imensa maioria de nós: benefícios são algo bom e danos são algo ruim, portanto, nada mais justo do que colocar como meta de nossas decisões aumentar um e diminuir o outro.  Porém, algumas pessoas possuem críticas a essa forma de pensar. A crítica mais comum é a seguinte: como poderemos prever as consequências de nossas decisões? É possível haver desdobramentos que sequer nos damos conta que existirão. Assim, defendem esses críticos, devemos seguir certas regras simples mais seguras como “não matar”, “não roubar”, “não mentir”, “não trapacear”, “não sermos violentos” etc. Tais regras, defendem essas pessoas, cumprem todas as exigências formais.

Por enquanto, temos duas opções, que aparentemente se mostram em conflito: ou adicionamos um conteúdo consequencialista em nossas decisões, e temos de raciocinar caso a caso para saber se a decisão terá mesmo as melhores consequências, ou seguimos regras simples, como as citadas acima, sem ter de fazer um raciocínio caso a caso. Antes, contudo, é importante perguntar: “em que base podem ser defendidas tais regras simples?”.

Um tipo de defesa é a que se segue: (1) Veja, essas regras se mostraram, ao longo da história, como produzindo as melhores consequências na grande maioria dos casos. Pode ser que “dizer a verdade” nem sempre traga as melhores consequências (pois, como no famoso exemplo, um assassino pode bater à nossa porta perguntando se ali se encontra algum inocente que ele possa matar), mas nos poupa do problema de não podermos prever os desdobramentos de consequências. Um exemplo típico dessa defesa é o ditado “violência só gera mais violência”.

Há várias respostas possíveis de serem dadas à essa primeira defesa. Uma delas é que ela não deixa de ser consequencialista. A justificativa apresentada para as regras é que elas “levam às melhores consequências na maioria dos casos”.  A única diferença é que, em vez de pensarmos em cada decisão, pensamos nas regras mais gerais. Contudo, alguém que adote o raciocínio caso a caso pode ainda questionar: “Dizer que devemos sempre falar a verdade e sermos sempre pacifistas pode ser um discurso lindo, mas, e nos casos onde vemos claramente que seguir a regra leva a consequências desastrosas, como no caso do assassino curioso, citado acima? Devemos, a despeito das consequências, dizer a verdade? E quando percebemos que a única maneira de impedir a morte de um inocente é usar da força bruta para imobilizar o atacante por alguns instantes? A violência gera mais violência nesse caso? Se admitimos que existem exceções para dizer a verdade e para sermos pacifistas, então voltamos ao raciocínio caso a caso, o que acaba ainda por apontar que em determinados casos, temos, sim, uma boa capacidade de probabilidade (ainda que não certeza) dos desdobramentos das consequências. Assim, poderíamos aceitar as regras curtas na maioria dos casos, mas elas não seriam absolutas – abririam exceções onde soubéssemos que segui-las provavelmente seria pior. Outra possível resposta é apontar que duas regras, no exemplo do assassino, entram em conflito, sendo uma “não mentir” e outra “proteger a vida de um inocente”. Qual delas deveria ter prioridade? Se é dito que é o “proteger a vida de um inocente”, apontando-se para o dano pior que é perder a vida do que receber uma mentira, então continuamos consequencialistas.

Outro tipo de defesa da abordagem das regras simples possui um teor anticonsequencialista, e é oferecido na tentativa de tornar as regras simples como absolutas (não contemplar exceções). Segundo essa perspectiva (2), as regras simples devem ser seguidas não porque, na maioria dos casos, tem mais probabilidade de trazer as melhores consequências, mas simplesmente por serem “verdades morais autoevidentes” dignas de serem buscadas, independentemente de consequências. Olhando à primeira vista, tal proposta parece muito estranha. Contudo, é importante lembrar que a maioria das pessoas parece seguir tal proposta. Enfatizo aqui que o fato de a maioria seguir tal proposta não é, de maneira alguma, um argumento a favor dela, mas apenas uma constatação de um fato. Tomemos como exemplo a regra “nunca se deve tirar a vida de um ser humano inocente – sua ou dos outros”. Muitas pessoas que aceitam tal regra não admitem exceções. Se há uma vida sem a menor possibilidade de esta vir a ser outra coisa que não extremos de sofrimento total, sem nenhuma possibilidade de qualquer desfrute, e o indivíduo que a vive está há meses suplicando para morrer, ainda assim afirmam que tal pessoa deveria aguentar o sofrimento extremo, em nome de preservar algo de “valor moral autoevidente”, como a vida. Outras regras do mesmo tipo seriam “jamais mentir”, “jamais tirar a liberdade de alguém”, “jamais intervir no curso natural das coisas” etc.

Infelizmente (ou felizmente), dizer que algo é uma “verdade moral autoevidente” não é um argumento, é apenas retórica. A ideia de que certas regras são absolutas até mesmo em caso de extremo sofrimento é difícil de engolir, e precisa de justificação. Várias críticas podem ser endereçadas a esse tipo de visão: (1) Será que tais regras são mesmo “verdades morais autoevidentes”, ou elas existem por alguma razão que diz respeito às consequências na maioria dos casos, e, de tanto as usarmos ao longo da vida (pelo fato de a maioria dos casos se encaixarem nelas), elas acabam adquirindo a aparência de verdades autoevidentes? Por exemplo, pode ser que a regra “não matar” se baseie numa razão (a saber, de que a vida é algo bom para aquele que vive, ou de que, mesmo que seja ruim, matar vai contra os desejos da vítima), e às vezes não se perceba que tal razão não estão ali em determinados casos.

Para evitar que se cometa esse tipo de erro na aplicação de regras (aplicá-la em casos em que a razão que a sustentava não existe mais), muitos filósofos sugerem um teste. Defendem que, além de todas as exigências formais, o agente deve mostrar que aplicar o princípio naquelas circunstâncias possui boas consequências, ou seja, que vai trazer mais benefício do que malefício caso seja cumprido. É claro, como os conteúdos éticos precisam estar de acordo com a regra da universalidade, não podemos pensar o benefício/malefício apenas para quem está agindo, ou um determinado grupo de indivíduos, mas sim, a todos os indivíduos afetados pela decisão que podem ser beneficiados ou danados. Mas, como vimos, defensores da teoria das “regras absolutas independentes de consequências” pensam diferente. Qual caminho devemos escolher?

Discutiremos isso na próxima coluna.

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* Luciano Carlos Cunha é Mestre em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Licenciado em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), membro do corpo editorial e colaborador da revista eletrônica Pensata Animal (www.pensataanimal.net) e autor do blog Desafiando o Especismo (www.lucianoccunha.blogspot.com).

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Sobre o raciocínio ético: a forma (Parte 3)

Bom dia!

Segue a parte 3
do artigo intitulado "Sobre o raciocínio ético", finalizando a seção "forma" (partes 1, 2 e 3), que diz respeito à forma que o raciocínio deve ter. As partes restantes (4, 5, 6 e 7) abordarão os conteúdos possíveis de preencherem essa forma, considerando as consequências sobre os atingidos pela decisão nas deliberações éticas.  

Volto a repetir que considero a leitura deste artigo indispensável, pois, como nosso amigo Luciano Cunha já havia concluído por aqui, "Nossos sentimentos podem ser apenas produto de nossos preconceitos (ou podem ser realmente sentimentos éticos, mas só podemos descobrir isso se fizermos uma análise racional visando eliminar possíveis preconceitos)." Dessa forma, se estamos realmente interessados em agir da forma correta, é preciso darmos mais atenção ao que a razão tem a dizer sobres as questões éticas, inclusive sobre a reflexão proposta neste blog (na postagem intitulada "O que há de errado com o especismo???"): como (com qual coerência) nós podemos respeitar a vontade que uns (os animais humanos) têm em continuar vivos e aproveitar a vida, e, ao mesmo tempo, desrespeitar essa mesma vontade em outros (os animais não-humanos sencientes que, assim como nós, também querem continuar vivos e desfrutar a vida)??? 

Boa reflexão e até a próxima!!!


Abraços!
Bruno


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Sobre o raciocínio ético: a forma (Parte 3)

Por Luciano Carlos Cunha*

Finalizando a lista de exigências formais para uma decisão ser eticamente válida, iniciada há duas colunas atrás, temos o seguinte:

10 – Imparcialidade – A razão permite alguém perceber que é apenas mais um indivíduo, entre bilhões, podendo ser afetado pelas decisões de outros. Caso tenha o pensamento de que é mais especial que os outros indivíduos, a razão mostrará para ele que isso é uma ilusão, haja vista geralmente não existir motivo para tal crença. Mesmo se é oferecida uma razão, imediatamente tal afirmação compromete o falante a reconhecer que caso se ele mesmo deixe de apresentar tal característica, perde o valor que reivindica. Além disso, não necessariamente tal razão apontaria uma característica válida (veremos exemplos no item 11).
A exigência de imparcialidade é um paralelo, com relação aos pacientes da decisão, da exigência de que o princípio deve valer para todo agente cumprir. Se o princípio deve valer para todo agente moral cumprir, igualmente deve valer independentemente de quem for afetado pela decisão. Se digo que matar é errado quando a vítima serei eu (digo, por exemplo, que eu vou ser prejudicado pela perda do tempo de vida feliz que ainda tenho pela frente), estou comprometido a dizer que o mesmo ato é errado quando a vítima for qualquer outro indivíduo que ainda tenha tempo de vida feliz a desfrutar pela frente. Ou seja, o princípio precisa ser aplicado desinteressadamente. Por isso, preconceitos não são éticos. Os racistas, sexistas, especistas e egoístas, por exemplo, mantém decisões totalmente diferentes em contextos muito semelhantes, apenas por variar o indivíduo afetado. Isso viola a exigência de imparcialidade. Por exemplo, o princípio do egoísmo “que cada um faça apenas o que for melhor para si mesmo” é geral o bastante (por não fazer referência a indivíduos específicos) e pode ser recomendado a todos os agentes, mas, por tratar casos semelhantes de forma diferente (por exemplo, o interesse em sofrer é tratado de um jeito quando aparece em mim, e é tratado de outro quando aparece em outros), é um princípio prudencial, e não um princípio ético.

11 – Coerência.
Essa exigência diz: “casos semelhantes, decisões semelhantes”. A partir dos exemplos anteriores, você pode ter pensado várias exceções para os mesmos não serem aplicados a todos os agentes morais ou a todos os pacientes morais. Por exemplo, se o Sr. Pipóquio está acorrentado, obviamente não pode cumprir a regra “todos devem ajudar os pobres”. Ou, poderíamos dizer que a regra “todos devem dar lugar a idosos no ônibus” não se aplica quando o idoso é o Sr. Marmôncio, que detesta ir sentado. Em resumo, se um caso é parecido, mas vai ser tratado diferentemente, então precisa ser apontado que característica há nele que o torna uma exceção à regra. Essa característica precisa ser relevante para o que se está julgando. Por exemplo, se o que está em jogo é respeitar o interesse em viver, não é válido dizer que isso não se aplica quando a vítima for a Senhorita Emengarda, porque Emengarda não possui uma linguagem (ter ou não linguagem não tem nada a ver com o interesse em desfrutar da vida). Da mesma maneira, não é válido dizer que “o dever de ser vegano não se aplica a Fulano, pois ele vive numa cultura onde comer animais é um valor sagrado”. Já que é possível que ele contrarie sua cultura, e os padrões éticos não são a mesma coisa que padrões culturais, essa característica não é uma exceção válida.

12 – Subordinar princípios não-éticos. Como o princípio ético serve como guia para as decisões de um ser racional (justamente por ser fundado na razão), ele não pode estar subordinado a princípios de outras naturezas (prudenciais, instrumentais, estéticos, profissionais, etc.); pelo contrário, são esses outros princípios ou regras que devem ser avaliados em termos de justificação à luz do princípio ético. O princípio ético pode apontar como válidos outros valores de natureza não-ética (mas nem por isso, anti-ética) que cultivamos (por exemplo, determinados valores estéticos, prudenciais, etc.), mas também pode colocá-los sob dúvida e até mesmo revelá-los como inválidos.
A ética diz respeito àqueles princípios que comandam todas as outras decisões do agente. Por exemplo, pode existir um código de conduta de uma determinada profissão, mas esse código não é o padrão ético definitivo, pois ele pode ser avaliado em termos de outros princípios mais gerais, a fim de descobrirmos se o código  mesmo é ético ou não. Por exemplo, o código de conduta dos psicólogos pode mandar guardar sigilosamente, sem exceção, as informações reveladas pelos clientes. Contudo, se um cliente revela que irá assassinar a esposa naquela noite, o psicólogo não pode pretender que mencionar a proibição em revelar informações explícita no código se constitua uma justificativa ética para a decisão de não avisar a esposa. Aqui faz total sentido a pergunta: “é certo seguir o código, nessa situação?”. Isso é relevante, pois, em determinadas situações, o que o código manda fazer pode estar em conflito com outros princípios éticos que possuem peso maior. A decisão de violar o código poderia ser justificada, por exemplo, na base de que o princípio da não-maleficência tem peso maior do que o princípio de cumprir promessas. Portanto, como o agente tem liberdade para escolher seguir o código ou não, caso escolha for por não avisar a esposa e esta for assassinada, parte da culpa do assassinato é dele. Portanto, decisões éticas são aquelas das quais temos que assumir a responsabilidade pela escolha, já que ninguém as escolhe para nós, a não ser nós mesmos.
Outro exemplo: as regras de trânsito também estão subordinadas a princípios éticos que as validam. Assim, na maioria dos casos, é um dever obedecer às regras de trânsito, mas, em determinadas ocasiões, elas podem entrar em conflito com outros princípios éticos mais fortes, às quais se subordinam. Por exemplo, pela lei de trânsito, certas placas nos proíbem parar ou estacionar em determinados locais; mas, se um motorista vê alguém caído no meio da estrada, bem na frente dessa placa, ele tem aí uma razão para violar justificadamente a lei de trânsito nessa situação. Caso tivesse passado por cima desse alguém, não seria válida como justificativa ética mencionar que a lei de trânsito o proíbe de parar naquele local, já que as leis de trânsito, assim como os códigos profissionais, também estão subordinados aos princípios éticos que os validam. Isso não significa que então temos justificativa para violar tais regras quando bem entendermos; a justificativa precisa estar amparada num princípio ético que tenha peso maior do que a regra, e que aponte a contradição em seguir a regra, naquele momento. Por exemplo, se as regras de trânsito servem para proteger a vida de motoristas e pedrestes, é contraditório cumprí-las quando o resultado de obedecê-las for contrário a tal meta.
Outro bom exemplo de subordinação é a objeção ao veganismo comumente apontada: “mas, eu gosto de comer animais”. O que um proponente dessa objeção aponta é que há uma expressão de gosto pessoal (portanto, não um princípio ético, e não necessariamente um gosto válido eticamente) que conflita com o que o princípio ético manda fazer. Contudo, apontar isso não é objeção alguma, haja vista que também as expressões de gosto pessoal estão subordinadas logicamente aos princípios éticos. Afinal de contas, estupradores também adoram estuprar, mas nem por isso o estupro é válido eticamente.

Até agora, vimos exigências formais (dizem respeito à forma que o raciocínio deve ter). Nessa forma, vários conteúdos podem ser aplicados. Nas próximas colunas sobre raciocínio ético falaremos sobre os conteúdos possíveis de preencherem essa forma e da importância em levarmos em conta as conseqüências sobre os atingidos pela decisão nas deliberações éticas.

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* Luciano Carlos Cunha é Mestre em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Licenciado em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), membro do corpo editorial e colaborador da revista eletrônica Pensata Animal (www.pensataanimal.net) e autor do blog Desafiando o Especismo (www.lucianoccunha.blogspot.com).

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Sobre o raciocínio ético: a forma (Parte 2)

Bom dia!

Segue a parte 2
do artigo intitulado "Sobre o raciocínio ético", que será dividido em 7 partes (7 postagens). Volto a dizer que o considero de indispensável leitura, pois, como nosso amigo Luciano Cunha já havia concluído numa das postagens anteriores, "Nossos sentimentos podem ser apenas produto de nossos preconceitos (ou podem ser realmente sentimentos éticos, mas só podemos descobrir isso se fizermos uma análise racional visando eliminar possíveis preconceitos)."

Boa reflexão e até a próxima!!!


Abraços!

Bruno 

 
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Sobre o raciocínio ético: a forma (Parte 2)
 
Por Luciano Carlos Cunha*

Dando continuidade à lista de exigências formais para a validação de uma decisão como ética, iniciada na coluna anterior:

5 – Clareza conceitual:
Os termos do princípio ou regra precisam ser bem definidos, caso contrário, não ajudarão ninguém a escolher o que decidir. Por exemplo, se alguém propõe “devemos respeitar à natureza”, deve explicitar claramente o que significa “respeito” e “natureza”. Por exemplo, “respeitar a natureza” pode ser entendido como preservar plantas, animais silvestres, rios, montanhas, etc. Pode se referir também “deixar os acontecimentos naturais seguirem o seu curso (trovoadas, enchentes, erupções vulcânicas, predação, morte natural, não fazer a barba, não tomar remédio, não usar camisinha, etc). Pode se referir à só fazer aquilo que serve a uma “função” natural (por exemplo, fazer sexo apenas para ter filhos). Em cada uma dessas definições, a ação prescrita vai ser muito diferente uma da outra. Por exemplo, se é definido como “preservar animais e plantas” vai mandar socorrê-los de uma enchente provocada por causas naturais. Se não mandar, então é porque está sendo definido como “deixar as leis naturais seguirem o seu curso”. Se deixamos o termo vago, não saberemos exatamente o que fazer. Não estou afirmando que essas interpretações de “respeito à natureza” são eticamente válidas; trago-as apenas para ilustrar a dificuldade com a clareza conceitual.

6 – Fatos relevantes:
Um bom raciocínio ético começa com a interpretação dos fatos como eles são, e não como gostaríamos que fossem. Além de coletar todos os fatos, precisamos ter atenção sobre quais são relevantes para a decisão e quais não são. Veremos um exemplo desse ponto no item 11.

7 – Generalidade:
O princípio ético tem como objetivo ser recomendado a todos os agentes morais. Por isso, precisa ser geral em sua forma, ou seja, não pode fazer referência a indivíduos específicos, pois visam serem aplicados em muitos casos. “Que todos façam o que é melhor para o Luciano Cunha” ou “que João cumpra o que prometeu para Maria” não são princípios ético, apenas aplicações particulares de certos princípios. Se, no primeiro exemplo, dizemos que Luciano Cunha é, de todos os indivíduos salvos de um naufrágio, o que está em pior situação, então o mesmo vale para todo e qualquer indivíduo que pode se encontrar em seu lugar. A regra seria então: “atender primeiro o que estiver na situação pior”. No segundo exemplo, teríamos de tornar a regra geral o bastante para contemplar todo e qualquer indivíduo que pudesse se encontrar no mesmo tipo de situação. Por exemplo, “Que todos cumpram suas promessas”.

8 – Deve valer para todos os agentes morais.
Se, como vimos, o princípio precisa ser geral na forma¸ então não faz sentido dizer que vale para um agente cumprir e outro não. Se fazer sofrer é errado, é errado pelo ato e a consequência em si, e não de acordo com quem o praticou. Por exemplo, dizer que “sou vegano, mas se outras pessoas quiserem comer animais, não há problema algum” não é uma posição ética a favor do veganismo. Pelo contrário, é uma posição que diz ser certo (mas não um dever) o carnivorismo. Uma posição ética a favor do veganismo teria de dizer “todos os agentes morais devem ser veganos”, que poderia estar baseada, por exemplo no princípio da não-maleficência. Assim, a menos que seja apontada uma razão válida para eximir um agente moral do cumprimento de um dever, é necessário reconhecer que, todas as outras coisas sendo iguais, um princípio ético é sempre recomendado para todos os seres racionais, pois esta é justamente sua finalidade (orientar as decisões de seres racionais).

Dever, certo e errado:

Importante notar que, se alguém fala que alguns atos são opcionais eticamente, também está prescrevendo que isso deve valer para todos os agentes morais. Mesmo quando alguém, por exemplo, diz que “doar órgãos deve ser opcional”, espera que todos os outros agentes concordem que isso deve ser opcional. Assim, está dizendo que tal ato é certo, mas não um dever. Vimos no item anterior que essa implicação (de valer para todos os agentes) está tão ligada ao próprio raciocínio, que nem os subjetivistas/relativistas podem deixar de reivindicá-la quando afirmam que a ética é subjetiva ou relativa, pois esperam que todos concordem com isso (mas, como vimos, isso também contradiz suas pretensões). Agora, quando alguém diz que “trapacear é errado”, está dizendo que é um dever não trapacear. Quando alguém diz que, “o certo é dizer a verdade”, está dizendo que dizer a verdade é um dever. As idéia de “Dever” e “o certo” deixam apenas uma única opção para o agente; “errado” proíbe uma opção, ainda que deixa em aberto se existem várias ou apenas uma correta e; “certo” valida uma opção, ainda que não a obriga. Contudo, na reivindicação de todas essas categorias, sejá lá quais forem, está implícita a idéia de que deve valer para todos os agentes.

Tomando novamente o exemplo anterior, podemos perceber agora que não apenas os que dizem “todos deveriam se tornar veganos” estão prescrevendo sua posição como válida para todos cumprirem. Os que dizem que “ser vegano deveria ser opcional” estão automaticamente dizendo que “comer animais é certo, mas não um dever”, portanto, pretendendo que todos os agentes concordem com essa afirmação. Na maioria das vezes, os que reivindicam um dever de praticar o veganismo são acusados de querer que todos adotem sua posição; contudo, isso vale também para os que defendem que o veganismo é opcional, bem como os que afirmam que o veganismo é errado. Em suma, qualquer posição que pretenda ser validada como ética, precisa incorporar essa exigência fundamental de valer para todos os agentes morais. Importante lembrar que isso não significa que toda posição que cumpra essa exigência seja válida eticamente. Isso não pode acontecer, porque do contrário, teríamos três posições válidas que estão diretamente em conflito (veganismo é um dever; veganismo é opcional; veganismo é errado). Por esse motivo foi mencionado que todos os critérios listados aqui são necessários, ou seja, não basta cumprir um deles, mas sim, todos. Veremos na terceira parte que apenas uma das posições acima cumpre todos os critérios listados aqui.

9 – Deve valer com independência de estados subjetivos dos agentes morais.
Nossa preocupação é descobrirmos quais ações ou traços de caráter são errados, certos, um dever, etc. Como vimos, na refutação do subjetivismo feita algumas colunas atrás, essas coisas independem dos estados subjetivos de quem está decidindo. Só por eu querer que algo seja certo não faz esse algo deixar de ser errado. Portanto, um bom raciocínio ético reconhece que o certo, errado, dever são como são independentemente das inclinações, desejos e emoções de quem está decidindo. Alguém não consegue, por exemplo, fazer com que ajudar os pobres deixe de ser um dever só porque não gosta de ajudar. É por isso que não faz sentido pensar que questões como o status moral dos animais não-humanos é algo para quem “gosta de animais”, apenas.

O falácia do apelo à autoridade

Importante lembrar que o mesmo vale  para os desejos de uma autoridade moral. Supondo a maior autoridade moral que pudesse existir (por exemplo, um Deus, que tivesse todo o conhecimento moral do mundo). Se as coisas fossem certas ou erradas de acordo com a vontade de Deus, então, se Deus desejasse, o estupro seria correto. Mas, continuaríamos a achar o estupro errado, mesmo que Deus dissesse que é correto, pois mesmo Deus ainda teria que apresentar uma razão para nos convencer que algo tão ruim assim é correto – caso contrário, perceberíamos seu desejo como arbitrário demais (mesmo Deus estaria sujeito às regras racionais). Se, em contrapartida, é dito que Deus é bom, e jamais poderia desejar que algo como o estupro fosse correto, então admite-se um padrão ético objetivo, que é independente até mesmo da vontade de deus. O mesmo vale para qualquer outra autoridade moral. Se “A” é uma autoridade moral, a quem devemos nos inspirar, é porque faz as coisas que são corretas; e não que as coisas passam a ser corretas porque são feitas por “A”. Confundir esse ponto é cometer a falácia do apelo à autoridade (por exemplo, “x deve ser errado, porque A, que é uma autoridade em ética, disse que é errado”).  Isso é importante, porque, ao reconhecermos que as coisas são certas ou erradas independentemente de quem as pratica, podemos detectar erros até mesmo na posição de indivíduos considerados autoridades morais.

Na próxima coluna, continuaremos com as exigências formais para uma decisão ser validada eticamente.


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* Luciano Carlos Cunha  é Mestre em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Licenciado em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), membro do corpo editorial e colaborador da revista eletrônica Pensata Animal (www.pensataanimal.net) e autor do blog Desafiando o Especismo (www.lucianoccunha.blogspot.com).

domingo, 31 de julho de 2011

Sobre o raciocínio ético: a forma (Parte 1)

Bom dia!

Gostaria de compartilhar 
com todos aqui (enfim!) o tão esperado artigo intitulado "Sobre o raciocínio ético", que será dividido em 7 partes (7 postagens). Considero-o de indispensável leitura, pois, como nosso amigo Luciano Cunha já havia concluído na postagem anterior, "Nossos sentimentos podem ser apenas produto de nossos preconceitos (ou podem ser realmente sentimentos éticos, mas só podemos descobrir isso se fizermos uma análise racional visando eliminar possíveis preconceitos)."

Dessa forma, se estamos realmente interessados em agir da forma correta, é preciso darmos mais atenção ao que a razão tem a dizer sobres as questões éticas, inclusive sobre a reflexão proposta neste blog (
na postagem intitulada "O que há de errado com o especismo???"): como (com qual coerência) nós podemos respeitar a vontade que uns (os animais humanos) têm em continuar vivos e aproveitar a vida, e, ao mesmo tempo, desrespeitar essa mesma vontade em outros (os animais não-humanos sencientes que, assim como nós, também querem continuar vivos e desfrutar a vida)??? 
 
Boa reflexão e até a próxima!!!


Abraços!

Bruno 

 
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Sobre o raciocínio ético: a forma (Parte 1)
 
Por Luciano Carlos Cunha*

Nas colunas anteriores, vimos que a existência de um lugar para a razão na ética faz com que esta deixe de ser relativa, subjetiva ou meramente emocional. Contudo, não falamos nada sobre como a razão pode ajudar a conhecermos o conteúdo do que é o correto, o dever, o justo, etc. Muito comumente é perguntado: “mas, a razão também não pode ser usada para fazer o mal?”. Pretendo resumir nessa coluna algumas características necessárias para que se possa dizer que um raciocínio é ético (em oposição ao raciocínio não-ético: instrumental ou prudencial, por exemplo). A partir desses critérios, poderemos ver como é possível colocar a ética em termos objetivos. Não pretendo aqui listar todos os critérios, mas somente os principais. Portanto, a lista permanece em aberto para o eventual acréscimo de critérios que possam refinar a forma do raciocínio. Vale lembrar que todos os critérios listados são necessários (ou seja, a decisão, para ser ética, não basta que cumpra apenas um ou alguns deles; precisa cumprir todos).

Antes de listarmos os critérios é importante falar sobre dois conceitos que estarão em quase todas as discussões da ética: agente moral e paciente moral. Nem todos os autores definem esses conceitos da mesma forma, e eu vou adotar aqui uma definição particular que permite distinguir alguns aspectos importantes. Os agentes morais são aqueles indivíduos a quem cabe cumprir o que a ética prescreve. Por possuírem entendimento racional dos critérios a seguir, podem ser responsabilizados pelo que escolhem. Os humanos adultos normais, pelo menos, se enquadram nessa categoria. Daí vem a idéia de aplaudir alguém que fez algo correto ou repreender alguém que fez algo errado. Pacientes morais, por outro lado, por não possuírem compreensão intelectual dos critérios a seguir, não podem ser responsabilizados pelas suas ações (nem aplaudidos nem culpados). Contudo, podem sofrer conseqüências benéficas ou maléficas de acordo com o que os afeta (por exemplo, decisões dos agentes morais). Portanto, se os agentes morais são aqueles que devem se preocupar com suas decisões, os pacientes morais são aqueles com quem os agentes devem se preocupar quando tomam as decisões. Estão no grupo dos pacientes morais, humanos muito novos, com determinadas doenças mentais, a maioria dos animais não-humanos, etc.

Vale lembrar também que todo aquele que está em condições de receber uma consequência benéfica ou maléfica da decisão dos agentes é um paciente da decisão, mesmo quando esse paciente também tenha capacidade para a agência moral (quando é um humano adulto normal, por exemplo). O inverso também é verdadeiro: pacientes morais, embora não possam ser responsabilizados pelo que fazem, podem afetar maléfica ou beneficamente outros indivíduos com o que fazem. Por exemplo, humanos adultos (agentes) e animais (pacientes) podem ser afetados por uma enchente, ou pela ação de uma criança humana que brinca com uma arma de verdade. Ainda que não faça sentido responsabilizar a natureza ou a criança pelo dano que possa causar a outros, isso não significa que, se há um agente moral que pode intervir no desenrolar dos acontecimentos, ele não deve fazer nada só porque não é um acontecimento que provém da ação de seres responsáveis. O agente moral tem a capacidade de deliberar se deve intervir ou não, então ele é responsável pelo que escolhe, mesmo quando o mal não foi primeiramente causado por ele (mas pode ter continuidade em sua omissão).

Vamos então às exigências para que estão implicadas em aceitar que a razão possui um papel a desepenhar no debate ético:

1 – Deve ser compreendido por todos os seres racionais:
Se o que procuramos é um critério objetivo, então obviamente ele precisa ser um que possa ser compreendido e aceito por qualquer agente moral (qualquer ser dotado de razão). Então, é sempre lícito perguntar: isso poderia ser aceito por qualquer ser capaz de razão independentemente de crença religiosa, cultura e época? Note que isso é diferente de dizer que em lugares e épocas diferentes existem problemas diferentes. A questão aqui é saber se exatamente o mesmo problema, nas mesmas circunstâncias, caso aparecesse em outra época ou lugar, deveria ser resolvido desta maneira.

2 – Racionalidade:
O critério anterior não indica que todos os agentes morais irão, de fato, compreender e aceitar o princípio. Significa apenas que o princípio poderia ser compreendido e aceito por todo e qualquer ser racional, independentemente de época e lugar. Como saberemos isso? Por haver uma argumentação consistente que lhe de apoio, que ela mesma não viole as leis da lógica, não caia em falácias. Por exemplo, não pode haver contradição: uma mesma decisão, nas mesmas circunstâncias, não pode ser certa e errada ao mesmo tempo. Vimos nas colunas anteriores que, por exemplo, o subjetivismo cometem esse tipo de falácia (pois a mesma decisão pode ser certa e errada ao mesmo tempo, nas mesmas circuntâncias, dependendo de quem decide).

Essa exigência também se caracteriza pelo fato do princípio ter de estar embasado numa razão, um argumento, uma justificativa que possa ser aceita por um ser racional. É essa razão que servirá como fundamento das regras. Por exemplo, a regra de que é errado matar pode estar fundada na razão de que é ruim perder uma vida que proporciona desfrute (algo que pode ser compreendido por qualquer ser racional). Exceções a essa regra podem surgir quando a razão que dava sustentação à regra não se apresenta em determinado caso (como é o caso quando um paciente terminal incurável solicita eutanásia, por exemplo).

3 – Deve poder ser universalizada:
O critério da universalidade implica que, ao tomarmos uma decisão, precisamos nos imaginar no lugar de todos aqueles envolvidos, afim de decidir qual, dentre as opções disponíveis, é realmente a melhor (uma que poderia ser aceita, independentemente da posição que fosse ocupada). Isso implica que algumas decisões podem ser contraditórias, e, com isso, eliminarem a possibilidade de serem éticas.  Por exemplo, se uma determinada busca pelo prazer ou liberdade é alcançada com o impedimento da busca do prazer ou liberdade de outros, então tal regra não pode ser universalizada, pois é ela mesma um impedimento ao que propõe.

A exigência de universalidade mostra que é possível querermos certas coisas apenas quando estamos ocupando uma posição privilegiada da situação, mas não a desejaríamos que todos a cumprissem o tempo todo, independentemente da posição que ocupássemos. É possível que eu deseje que seja correto o mais forte oprimir o mais fraco quando estou na posição de opressor, mas, basta imaginar situação semelhante, só que na posição de oprimido, ou, sem participar da situação, para logo perceber que é uma situação injusta. A exigência de universalidade se coloca para todo juízo que pretenda ser ético porque é um juízo tal que é recomendado para o cumprimento de todos; portanto, não é possível recomendar algo que só podemos aceitar quando estamos numa das posições e não em outras.

4 – Evitar apelos retóricos:
Se queremos descobrir a verdade em ética, precisamos tomar cuidado para não nos deixar levar por apelos retóricos. Exemplos clássicos desse uso são, diante do caso de alguém que assassinou os seus pais, dizer “tenham pena desse pobre órfão!”, ou “sabe quem falou que isso é certo? Jesus. Portanto, é certo”, ou ainda “Hitler foi um homem mau e era vegetariano; logo, ser vegetariano é errado”. Muitas pessoas pensam que os argumentos existem como um mero artifício para convencer os outros; já vimos na avaliação do emotivismo (coluna anterior) que, se isso estivesse correto, qualquer motivo que convencesse alguém seria uma razão ética válida, o que não é verdade. Isso não significa que as emoções não desempenhem um papel nas questões éticas; significa apenas que uma emoção que temos pode ser tanto uma resposta moral adequada quanto um preconceito, e não podemos descobrir qual das duas coisas ela é simplesmente por ser uma emoção forte.

Na próxima coluna, continuaremos com a lista de exigências formais.

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* Luciano Carlos Cunha  é Mestre em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Licenciado em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), membro do corpo editorial e colaborador da revista eletrônica Pensata Animal (www.pensataanimal.net) e autor do blog Desafiando o Especismo (www.lucianoccunha.blogspot.com).

quinta-feira, 30 de junho de 2011

É a ética subjetiva?

Boa noite, pessoal!

Antes de prosseguirmos com a postagem de hoje, volto a lembrar a reflexão que deixei na postagem intitulada "O que há de errado com o especismo???": como (com qual coerência) nós podemos respeitar a vontade que uns (os animais humanos) têm em continuar vivos e aproveitar a vida, e, ao mesmo tempo, desrespeitar essa mesma vontade em outros (os animais não-humanos sencientes que, assim como nós, também querem continuar vivos e desfrutar a vida)??? 
 
Antes de explorarmos o artigo escrito pelo Luciano Cunha sobre "Raciocínio Ético" (assunto da próxima postagem), que aborda o papel da razão na ética, segue abaixo o segundo dos dois textos introdutórios sobre os impactos da relatividade e da subjetividade na ética. 

Boa reflexão e até a próxima!!!

Abraços!

Bruno 
 
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É a ética subjetiva?
 
Por Luciano Carlos Cunha*
 

Muitas pessoas mantêm uma posição que se assemelha e ao mesmo tempo difere do relativismo moral (que refutamos na coluna anterior): o subjetivismo ético. Para essas pessoas, as questões éticas são meras disputas de opinião: “cada um tem a sua, e ninguém está certo ou errado – isso tudo é subjetivo”. Em comum com o relativismo, essa perspectiva sustenta que não há uma verdade universal em ética. Diferentemente do relativismo, o subjetivismo não diz que o certo/errado dependem da sociedade em questão, mas do que o indivíduo que mantém a opinião acha (sente). Isso evita o problema do relativismo, de não admitir reformas sociais (no subjetivismo, os indivíduos não precisam agir conforme as normas de sua sociedade ou grupo). 
Segundo o subjetivismo, quando alguém diz: “comer carne é errado!” está apenas relatando um fato sobre si mesmo (que tem um sentimento ruim quanto a comer carne), e não afirmando uma verdade sobre o ato de comer carne. Se alguém diz o oposto, “comer carne é certo!”, está também apenas relatando o sentimento que tem quanto a comer carne. Segundo essa perspectiva, não há como estabelecer a verdade em ética, ou, aliás, se a pessoa está dizendo a verdade sobre o sentimento que possui quanto a algo, então isso é toda a verdade que há.

Vale lembrar que, para o subjetivismo, todas as questões éticas se resumem à mera opinião. Não poderíamos dizer, por exemplo, que alguém que defende o nazismo ou a escravidão está errado. Se dissermos que alguém está errado em defender o nazismo, tudo o que estamos fazendo, de acordo com o subjetivismo ético, é relatando um fato sobre nossa mente (que nos sentimentos mal diante da ideia do nazismo). Assim, ao contrário de ser a perspectiva de que a ética é objetiva que pode tolerar imposições sanguinolentas por parte de pontos de vista privados, é o subjetivismo que possui enorme possibilidade disso. No subjetivismo, tudo se resume a questões de mera preferência pessoal.

Mas serão as questões éticas exatamente iguais a questões de preferência pessoal? Quando falamos de preferência pessoal, é verdade que estamos relatando algo sobre nós mesmos. Se digo que eu gosto de calor e estou sendo sincero no que digo, então é verdade que gosto de calor. Se você diz que não gosta de calor e está falando com sinceridade, então o que fala é verdade também. Há a possibilidade de as duas afirmações serem verdadeiras ao mesmo tempo, sem problema algum. Quando falamos isso, não estamos discordando: não caio em contradição se eu aceitar que tanto é verdade que eu gosto de calor quanto é verdade que você não gosta. Agora, vejamos uma questão ética: se digo que comer carne é errado, não posso dizer ao mesmo tempo que comer carne é certo. Mas, se o subjetivismo ético fosse verdadeiro, é o que teríamos de assumir. Se quando digo “comer carne é errado” estou dizendo que “eu, Luciano, tenho um sentimento negativo quanto a comer carne” (estou relatando algo sobre mim) e quando você diz o contrário está apenas relatando algo sobre você, então não estamos discordando. Como na questão de preferência pessoal, deveria ser verdade, ao mesmo tempo, que é certo comer carne, e que também é errado comer carne. Mas se é verdade que estamos discordando, então não é verdade que os juízos éticos são meros relatos sobre nós mesmos. Se fossem, não gerariam discordância, assim como não gera discordância saber que uma pessoa gosta de calor e outra não. Parece que quando alguém faz um juízo sobre comer carne (ou qualquer outro juízo ético), está falando sobre o ato de comer carne (independentemente de quem o faça), e não sobre si mesmo apenas.

Outro problema com o subjetivismo é que, se ele fosse verdadeiro, ninguém cometeria erro algum, nunca. Se os juízos éticos são meros relatos de fatos sobre como nos sentimos, então desde que estejamos realmente relatando como nos sentimos, estamos certos. Se mudarmos nossos sentimentos e mudarmos nosso julgamento, o subjetivismo ético diria que estávamos certos tanto antes quanto agora – e certos na mesma medida. Outro problema maior para o subjetivismo é o seguinte: supondo que você diga “a ética é subjetiva”, enquanto que eu digo “a ética não é subjetiva”; se estamos sendo sinceros ao relatar o que realmente achamos sobre a ética então o subjetivista não tem uma base para a dizer que a ética é realmente subjetiva, já que o outro discorda e, segundo o subjetivismo, ambas as posições são verdadeiras. Se o subjetivismo for verdadeiro, então os subjetivistas ficam sem uma base para defender que a ética é mesmo subjetiva e não objetiva.

Diante de todos esses problemas, alguns filósofos reformularam o subjetivismo e chegaram na teoria do emotivismo. O emotivismo diz que os juízos éticos não são verdadeiros nem falsos porque não exprimem fato nenhum (nem sobre verdades morais objetivas nem sobre o sentimento de quem está falando). Para o emotivismo, os juízos éticos são como tentativas de influenciar a conduta da outra pessoa para que esta faça ou deixe de fazer alguma coisa. Alguém que diz que comer carne é errado estaria, em outras palavras, dizendo “viva o veganismo!” – uma frase que não pode ser classificada nem de verdadeira nem de falsa. Assim, o emotivismo tenta consertar o problema da discordância (agora é possível dizer que discordamos porque discordamos quanto ao que desejamos que o outro faça) e o problema da infalibilidade (já que não se pode mais classificar os juízos éticos de acordo com sua veracidade/falsidade, não faz mais sentido falar em erro/acerto).

Contudo, o emotivismo não está livre de problemas graves. Um grande problema é que essa teoria assume que somos pura emoção, que não somos também dotados de razão. Quando alguém faz um julgamento ético, é sempre legítimo perguntar pelas razões que dão sustentação a tal julgamento. O emotivismo vê as razões apenas como tentativas de influenciar a conduta do outro. Portanto, desde que se consiga o efeito almejado, o emotivismo considera uma razão válida. Assim, como o filósofo James Rachels exemplifica, ao analisar a teoria: “Suponha que eu esteja tentando convencê-lo de que o Sr. Silva é uma pessoa má (…) mas você está resistindo. Sabendo que você é racista, eu digo ‘O Sr. Silva é negro’ ” (RACHELS. Elementos da Filosofia da Moral, p. 41). Se isso convencesse o interlocutor, o emotivista teria de considerar uma razão válida. Mas, obviamente, a raça de alguém não é relevante para estabelecer sua maldade, independentemente do que todas as outras pessoas do mundo pensam sobre isso. Então, por não conseguir distinguir quais razões são, de um ponto de vista ético, válidas (quais têm a ver com o assunto que está em discussão), o emotivismo também sucumbe, assim como subjetivismo e o relativismo.

A grande conclusão a partir desse ponto é então sobre a importância da razão na ética. Os que pensam não haver uma verdade objetiva em ética geralmente defendem sua perspectiva apontando que não existem fatos morais no universo físico, assim como existem fatos sobre outras coisas. Relativistas, subjetivistas e emotivistas criam então uma falsa dicotomia: “ou existem fatos éticos objetivos nas mesmas bases que existem fatos sobre o universo físico, ou então um juízo ético é sempre tão bom quanto qualquer outro”. A inexistência desses fatos não implica que a ética não seja objetiva, já que “as verdades morais são verdades da razão, ou seja, um julgamento moral é verdadeiro se respaldado por razões melhores que as alternativas” (RACHELS, Ibid, p. 42). Ainda que esses fatos não existam no universo, somos dotados de razão, e, por isso, sujeitos às mesmas regras lógicas. Isso significa que os argumentos podem ser avaliados em termos de plausibilidade. Na próxima coluna, tentarei falar um pouco sobre os métodos de raciocínio ético que visam guiar a investigação sobre como saber se um juízo é eticamente válido ou não.

Se as perspectivas relativistas/subjetivistas/emotivistas não conseguem se sustentar nem mesmo frente a alguns parágrafos de análise crítica, como é que atraem tantas pessoas? Talvez seja porque os seus defensores se veem seduzidos pela ideia óbvia de que sociedades/pessoas possuem visões morais diferentes e, precipitadamente, dão o salto para uma conclusão metaética de que não há objetividade em ética. As aparências enganam. E, como vimos, não podemos concluir que a ética é relativa/subjetiva simplesmente a partir do fato de que há discordância nos juízos morais. Algumas posições podem simplesmente estar erradas – dependendo das razões oferecidas em seu respaldo.

Finalizando, gostaria de apontar que apelar à emoção é uma tática muito usada dentro do movimento de defesa animal. Por mais que eu reconheça que os sentimentos desempenham um papel muito importante nas questões éticas (principalmente no que diz respeito à motivação para agir), penso que essa ênfase pode causar mais mal do que bem, principalmente se argumentos éticos sólidos não são apresentados conjuntamente. O interlocutor mais atento, mas que não conhece os argumentos a favor dos direitos animais,  pensará que estamos apenas querendo influenciar sua atitude, e que não estamos nem um pouco preocupados em saber se estamos realmente certos ou não. E, com relação a muitas pessoas, isso parece ser verdade: elas primeiro sentem que algo é errado, e depois buscam argumentos para sustentar a posição a todo custo. Mas, como vimos, nossos sentimentos podem ser apenas produto de nossos preconceitos (ou podem ser realmente sentimentos éticos, mas só podemos descobrir isso se fizermos uma análise racional visando eliminar possíveis preconceitos). O que quero dizer é que devemos dar mais atenção ao que a razão tem a dizer sobre as questões éticas que estamos discutindo se estamos interessados realmente em fazer o que é certo, descobrir a verdade.

 
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* Luciano Carlos Cunha  é Mestre em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Licenciado em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), membro do corpo editorial e colaborador da revista eletrônica Pensata Animal (www.pensataanimal.net) e autor do blog Desafiando o Especismo (www.lucianoccunha.blogspot.com).

terça-feira, 31 de maio de 2011

É a ética relativa?

Boa noite a todos!

Na última postagem, intitulada "O que há de errado com o especismo???" (leia aqui), deixei uma reflexão que gostaria de relembrar aqui antes de prosseguirmos: como (com qual coerência) nós podemos respeitar a vontade que uns (os animais humanos) têm em continuar vivos e aproveitar a vida, e, ao mesmo tempo, desrespeitar essa mesma vontade em outros (os animais não-humanos sencientes que, assim como nós, também querem continuar vivos e desfrutar a vida)??? 
 
Com o intuito de auxiliar tal reflexão, compartilharei, como já havia prometido, a íntegra do artigo intitulado "Raciocínio Ético", escrito pelo Luciano Cunha (que, não custa lembrar, tem mestrado na área - ética). Mas antes gostaria de fazer uma pequena introdução com dois pequenos textos (que dividirei em duas postagens), também do Luciano Cunha, sobre os impactos da relatividade e da subjetividade na ética. 
 
Segue abaixo o primeiro desses dois textos introdutórios. Boa reflexão e até a próxima!!!

Abraços!
Bruno 
 
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É a ética relativa?
 
Por Luciano Carlos Cunha*
 
Antes de discutirmos temas específicos da ética precisamos saber algo sobre a ética em si, e de que bases se deve partir para discutir questões de ética. Do contrário, corremos o risco de falar de algo que não fazemos a menor ideia do que seja. Antes de tudo, então, é preciso questionar alguns dogmas que impedem a discussão ética. Outra vantagem de discutirmos esses pontos primeiro é que eles se aplicam a qualquer questão ética, não apenas as que envolvam animais não humanos.
 
Todos que já participaram de um debate sobre alguma questão ética com certeza já escutaram (geralmente depois de vários argumentos terem sido discutidos): “Ah, mas isso tudo é relativo/subjetivo, nem adianta discutir”.  A crença de que a ética é relativa a cada sociedade ou subjetiva a cada indivíduo é amplamente difundida. Muitas  pessoas repetem essa alegação como se fosse uma verdade tão óbvia que não mereceria atenção qualquer posição que partisse do pressuposto de que a ética não é relativa ou subjetiva. Alguém que pretende defender que a ética pode ser discutida em bases objetivas certamente está, dizem eles, “tentando impor suas preferências pessoais aos outros”. Mas será que é realmente tão fácil assim sustentar essa afirmação sobre a natureza da ética (de que é relativa/subjetiva)? Com o curto espaço que possui essa coluna, pretendo mostrar que já é possível apontar inúmeros problemas graves nessas perspectivas que geralmente passam despercebidos, justamente por aquelas serem muitas vezes tomadas como “verdades óbvias”. Se o relativista/subjetivista pretende não ter a “cabeça fechada”, não pode deixar de questionar esses problemas.
 
Vejamos primeiro a perspectiva que afirma que o que é certo depende da sociedade em questão (relativismo ético). Deixaremos o subjetivismo para a próxima coluna. Quem defende essa perspectiva parte do fato verdadeiro de que há um relativismo cultural, ou seja, cada sociedade possui costumes diferentes – incluindo códigos morais diferentes. O que a tradição chinesa considera correto pode não ser o mesmo que a tradição esquimó, ou qualquer outra sociedade, por exemplo, considera. A partir desse fato, as pessoas concluem que não pode haver verdade universal em ética, pois, dizem essas pessoas, tudo o que podemos fazer é avaliar as coisas a partir do ponto de vista da sociedade na qual vivemos. Se fizermos isso, somos então considerados pelo relativista como arrogantes.
 
Mas será que, de um ponto de vista lógico, não há problema algum em concluir, a partir do fato de que culturas diferentes possuem códigos morais diferentes, que não há verdade objetiva em ética? O problema é que, mesmo que a premissa seja verdadeira (no caso, o fato de que existem códigos morais diferentes), a conclusão ainda pode ser falsa. Não podemos concluir do mero fato de que há discordância sobre um assunto, que não há verdade objetiva sobre tal assunto. Considere que discordamos sobre se tenho duas canetas na minha mochila ou uma só. Podemos concluir, desse mero fato de que há discordância, então que não existem nem duas nem uma caneta dentro da mochila? Não, porque uma das duas pessoas pode simplesmente estar enganada. Abrindo-se a mochila resolve-se esse problema. Alguém pode objetar que isso é válido para investigações sobre fatos físicos (os fatos físicos não são falsos ou verdadeiros de acordo com o que pensamos sobre eles) mas não para a ética. Mas, se for, então o argumento não pode simplesmente ser o de que há discordância na ética, já que, como vimos, o mero fato de haver discordância não é suficiente para afirmar que não há verdade objetiva sobre um assunto. Assim como no caso das canetas na mochila, é possível que na ética simplesmente algumas posições estejam erradas, mesmo que seja verdade que haja discordância. Assim, a conclusão não resulta da premissa, pois, caso haja verdade em ética, é possível que nem todos tenham conhecimento dela. Também, por outro lado, pode ser que o relativismo moral seja verdadeiro. Se for, outro argumento teria de ser endereçado que não meramente apontar o fato de que há discordância.
 
Geralmente os defensores do relativismo alegam que uma posição ética objetiva pode resultar em danos terríveis, como assassinar todos aqueles que discordam de sua posição. Contudo, além de haver o problema de que, ao afirmarem isso, abandonam o relativismo e adotam um padrão universal de julgamento (“o assassinato é ruim”), não percebem que é o relativismo que poderia tolerar práticas terrivelmente danosas. Eis algumas consequências da adoção do relativismo: (1) não poderíamos mais criticar o fato de algumas sociedades fazerem guerras, manterem escravidão, que tivesse ideais nazistas etc. Todas essas práticas seriam igualmente boas a qualquer outra; (2) não poderíamos mais questionar o código moral de nenhuma sociedade, inclusive a nossa (já que o relativismo implica que o correto é o que a sociedade afirma que é). Se o relativismo for verdadeiro, então todo código moral é perfeito; (3) se todo código moral for perfeito, então não podemos mais aprender algo com outras culturas, que, ironicamente, é umas das preocupações comuns entre muitos defensores do relativismo; (4) não poderíamos mais pensar que certas mudanças são para melhor. Não poderíamos dizer, por exemplo, que numa sociedade onde havia escravidão, e agora, todas as outras coisas continuam iguais exceto que não há escravidão, então algo melhorou – já que o relativismo diria que é um erro julgar uma prática de uma época de acordo com os padrões de outra; (5) teríamos de dizer que é sempre errado tentar mudar a sociedade em que se vive. Como o filósofo Peter Singer apontou, na crítica que faz ao ralativismo: o reformador, dentro dessa perspectiva se encontra numa posição difícil: “quando pretendem modificar as perspectivas éticas dos seus concidadãos, estão necessariamente errados; só quando conseguem conquistar a maioria da sociedade passam as suas opiniões a estar certas” (SINGER, Ética Prática, p. 14). Por isso, de acordo com o relativismo, seria correto tentar reformar nossa sociedade apenas se ela tivesse se afastando de seu código moral estabelecido. Poder-se-ia, aqui, objetar que a ética é relativa não à sociedade como um todo, mas ao grupo (classe social, por exemplo) dentro do qual alguém se insere dentro de uma sociedade. Essa mudança na definição de relativismo, embora conserte até certo ponto o problema de, aceito o relativismo, não fazer mais sentido questionar a sociedade, acaba criando o mesmo problema dentro dos grupos: aceito o relativismo de grupo, não faz mais sentido questionar as normas do grupo. Portanto, essa “solução” apenas transfere o problema para outra esfera, mas não o resolve. Assim, longe de ser uma perspectiva “cabeça aberta”, o relativismo é tudo o que um conservador extremo (seja das normas da sociedade, do grupo ou de qualquer outra coisa) gostaria para defender sua posição.
 
Outro argumento que tenta provar a validade do relativismo consiste em afirmar que todos os nossos padrões de certo/errado nada mais fazem do que refletir o código moral de nossa sociedade: “como podemos ter uma base neutra para julgar, se é assim? Mesmo se houver a verdade em ética, jamais poderemos sabê-la, então”. O problema com esse argumento é que não é verdade que todos os nossos juízos refletem o código moral de nossa sociedade. Se assim fosse, ninguém tentaria mudar nada na sociedade em que vive. Quando dizemos “a escravidão é errada”, não parece que estamos dizendo a mesma coisa que “minha sociedade condena a escravidão”; parece que estamos dizendo que a escravidão não deveria existir, independentemente do que o restante da sociedade pensa. O relativista pode objetar que as pessoas só tentam isso porque entraram em contato com outras sociedades, com padrões morais diferentes. Mas essa objeção perde, de fato que, mesmo se isso for verdade (e não temos evidências de que é), as pessoas ainda podem escolher qual código preferem seguir. E saber o que a sociedade acha que devemos fazer não ajuda. Ainda temos que tomar a decisão nós mesmos. O relativista poderia responder que as pessoas não são livres, e sim, determinadas, não podendo escolher coisa alguma. Mas aí não faria mais sentido reclamar quando elas afirmam que o relativismo não é verdadeiro.
 
O relativista ainda pode argumentar: “veja, a ética não é objetiva, dado que num contexto pode ser correto fazer algo e em outro não; pode ser errado mentir geralmente, mas não é errado mentir para enganar um terrorista e impedir que ele mate vários inocentes”. Ora, esse argumento não diz que a ética é relativa. Está apenas dizendo que às vezes as regras não cumprem o ideal a que se destinam (no caso, garantir benefício a inocentes), o que justifica quebrá-las nessas situações. Por exemplo, tal exceção à regra de mentir poderia ser justificada em qualquer sociedade, onde quer que aquele contexto aparecesse e poderia estar baseada, por exemplo, num padrão objetivo como “proteger inocentes”.
 
Quando alguém defende uma prática de uma outra sociedade apontando os benefícios que tal prática causa aos afetados por ela, então deixa de ser relativista. Se alguém defende que o infanticídio praticado por esquimós se justifica porque, apesar de tudo, essa é a saída para o problema que causa menor dano dentre todas as outras disponíveis, então não pode simplesmente dizer que alguém que é contra a mesma prática por argumentar que existe outra saída menos danosa está arrogantemente impondo os padrões de sua sociedade. Ao fazerem isso, adotam um padrão independente de julgamento, que é o benefício aos atingidos.
Assim, embora o relativismo traga a importante contribuição de colocar sob suspeita os valores de nossa sociedade (eles são um código moral entre muitos, portanto, podem estar, sob muitos aspectos, errados), apontando que aquilo que muitos sentem como verdades morais óbvias podem ser meros preconceitos culturais, isso não é o suficiente para fornecer um argumento que sustente a conclusão de que, então, a ética é relativa.
 
O relativismo parte do fato verdadeiro de que há discordância entre diferentes códigos morais de diferentes sociedades e salta para uma conclusão metaética, afirmando que a ética é relativa. Como vimos acima, o mero fato de haver discordância não é suficiente para provar essa conclusão e nenhum outro argumento é endereçado para cobrir essa lacuna. Portanto, a divergências entre diversos códigos morais não implica um relativismo ético. A ética não é relativa.

Diante dessas dificuldades, muitas pessoas abandonam o relativismo e adotam o subjetivismo ético (a visão de que o certo/errado depende não da sociedade, mas do que cada um acha). Uma análise dessa visão será o tema da próxima postagem.

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* Luciano Carlos Cunha  é Mestre em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Licenciado em Música pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), membro do corpo editorial e colaborador da revista eletrônica Pensata Animal (www.pensataanimal.net) e autor do blog Desafiando o Especismo (www.lucianoccunha.blogspot.com).